2.7.09

NEWS WEEKLY
Mohammed Hanif
Dawn News


3 comentários:

Carlos Reis disse...

PRÓLOGO. O CASO DAS MANGAS EXPLOSIVAS

“É possível que me tenham visto na televisão depois de o avião se ter despenhado. As imagens são rápidas e aparecem esbranquiçadas e levemente esbatidas. Foram retiradas depois dos dois primeiros noticiários porque, ao que parece, estavam a ter um impacto negativo sobre o moral das forças armadas do país. Embora nas imagens não se veja, estamos a dirigir-nos para o Pak One, estacionado nas costas do operador de câmara, no meio da pista de descolagem. O avião, ainda ligado a uma bomba auxiliar de combustível, está rodeado por um grupo de comandos especiais envergando camuflados e em atitude de alerta. O cinzento baço da fuselagem faz com que o aparelho se assemelhe a uma baleia encalhada que tenta arrastar-se até ao mar, desanimada perante a enormidade da tarefa que tem pela frente.

A pista fica no meio do deserto de Bahawalpur, a cerca de uns mil quilómetros do mar Arábico. Entre o brilho branco e ofuscante do sol e a extensão interminável de areia crepitante não existe nada a não ser uma dezena de homens com uniformes de caqui a dirigirem-se para o avião.

Por breves instantes vê-se nas imagens o rosto do general Zia, o derradeiro registo de um homem imensamente fotografado. A risca que lhe divide o cabelo ao meio reluz sob a luz do sol, os dentes de um branco artificial resplandecem, o bigode agita-se no seu jeito habitual diante da câmara, mas quando esta se afasta percebe-se que não sorri. Se observarmos com atenção, nota-se nele um certo desconforto. Avança com a passada típica de um homem com problemas de prisão de ventre.

O homem que caminha à sua direita é o embaixador dos Estados Unidos no Paquistão, Arnold Raphel, cujo crânio calvo e luzidio e o bigode meticulosamente aparado lhe dão o ar de um respeitável homem de negócios homossexual da América profunda. Sacode da lapela do blazer azul-marinho um grãozinho de areia invisível. A sua aparência elegante e displicente dissimula um espírito diplomático superior. Redige comunicados acutilantes e incisivos e tem a capacidade de não perder a sua proverbial polidez mesmo numa troca de palavras com um interlocutor extremamente hostil. À esquerda do general Zia, o seu antigo chefe de espionagem e director dos Serviços Secretos, general Akhtar, parece vergado sob o peso de meia dúzia de medalhas que ostenta no peito e arrasta os pés como se fosse o único homem do grupo consciente de que não deviam embarcar naquele avião. Tem os lábios contraídos e, apesar de o sol se ter apossado de tudo e drenado todas as cores à volta, nota-se que a pele dele, normalmente pálida, apresenta agora uma tonalidade amarelada e húmida. No obituário dos jornais do dia seguinte, descrevem-no como o "soldado silencioso" e um dos dez homens entre o Mundo Livre e o Exército Vermelho.

Quando se aproximam do tapete vermelho que se estende até às escadas do Pak One, apareço eu e dou um passo em frente. Percebe-se imediatamente que sou eu o único no grupo que sorri, mas quando faço continência e começo a encaminhar-me para o aparelho, o meu sorriso desvanece-se. Sei que estou a saudar um grupo de homens mortos. Porém, quando um tipo enverga o uniforme, tem de fazer continência. Não há volta a dar.

Mais tarde, os peritos forenses da Lockheed irão reunir as peças do avião acidentado e simular vários cenários, na tentativa de desvendarem o mistério de como um C130 em perfeitas condições de manutenção se despenhou em voo picado apenas quatro minutos após a descolagem. Os astrólogos irão vasculhar os dossiers com as suas previsões para Agosto de 1988 e responsabilizar Júpiter pelo acidente que custou a vida às mais altas patentes militares paquistanesas e ao embaixador americano. Os intelectuais de esquerda irão brindar pelo fim de uma ditadura cruel e evocar a dialéctica histórica presente nestas situações.

Carlos Reis disse...

Esta tarde, porém, a história dorme uma longa sesta como normalmente sucede entre o fim de uma guerra e o início de outra. Mais de cem mil soldados soviéticos preparam a retirada do Afeganistão depois de se verem reduzidos a comer fatias de pão barradas com graxa de sapatos, e esses homens que vemos nas imagens televisivas são os vencedores indiscutíveis. Preparam-se para a paz e, porque são indivíduos cautelosos, vieram a Bahawalpur comprar tanques enquanto aguardam o final da guerra fria. Cumprida a missão daquele dia, apanham o avião de regresso a casa. Com os estômagos cheios, esgotaram os assuntos de conversa inconsequente. Nota-se a impaciência própria de gente educada que não quer ofender ninguém. Só mais tarde é que as pessoas dirão: Reparem nessas imagens, reparem como caminham, com passos cansados e relutantes, salta à vista que estavam a ser conduzidos ao avião pela mão invisível da morte.

As famílias dos generais vão receber uma generosa indemnização e as urnas envoltas em bandeiras, com instruções rigorosas para não as abrirem. As famílias dos pilotos serão detidas e encerradas em celas com os tectos salpicados de sangue, durante uns dias, e depois mandadas embora. O corpo do embaixador será trasladado para o cemitério de Arlington e a lápide gravada com um cliché não totalmente destituído de uma certa elegância. Não haverá autópsias, as pistas serão infrutíferas, as investigações serão interrompidas e suceder-se-ão várias tentativas para abafar o caso. Os ditadores do Terceiro Mundo estão constantemente a ir pelos ares em circunstâncias estranhas, mas quando a estrela mais resplandecente do serviço diplomático dos Estados Unidos (e foi nestes termos que Arnold Raphel foi definido na cerimónia fúnebre de Arlington) desaparece juntamente com oito generais paquistaneses, é de esperar que alguém pague as favas. A Vanity Fair encomendará uma reportagem de investigação, o New York Times publicará dois editoriais; os filhos do falecido irão recorrer aos tribunais para se conformarem depois com cargos públicos bem remunerados. Dir-se-á que esta foi a maior trapaça da história da aviação desde a última maior trapaça.

Ninguém ligará a mínima importância à única testemunha desse passeio televisionado, o único que os acompanhou nesse percurso.
Porque para quem não viu as imagens, o mais provável é que desconheça a minha presença ali. Como a própria história. Eu fui o único que se salvou.

O que encontraram entre os destroços do avião não foram cadáveres, não foram mártires de semblante sereno, como pretendeu o exército, não foram homens desfigurados e estropiados, não suficientemente fotogénicos para serem mostrados na televisão ou às famílias. Despojos. O que encontraram foram despojos. Pedaços de carne agarrados aos fragmentos dispersos do avião, ossos calcinados a assomarem por entre o emaranhado de metal retorcido, membros decepados e rostos convertidos numa massa de carne rosada. Ninguém poderá dizer se o caixão enterrado no cemitério de Arlington não contém partes dos despojos do general Zia ou se quem jaz sepultado na Mesquita Faizal de Islamabade não são os despojos da estrela mais brilhante do Departamento de Estado. A única coisa que se pode afirmar com toda a certeza é que essas urnas não contêm os meus despojos.
É verdade, eu fui o único que se salvou.

Carlos Reis disse...

O apelido Shigri não constou das notícias, os investigadores do FBI não me ligaram nenhuma e nunca tive de me sentar debaixo de uma lâmpada desguarnecida para explicar as circunstâncias que me levaram a estar presente no local do acidente. Nem sequer figuro nas histórias urdidas para encobrir a verdade. Nem mesmo as teorias da conspiração que viram um objecto voador não identificado entrar em colisão com o avião presidencial, nem as testemunhas perturbadas que viram mísseis terra-ar serem disparados do lombo de um solitário burro, se preocuparam em inventar histórias sobre o rapaz de uniforme com uma mão na bainha da espada, que deu um passo em frente, fez continência e se afastou, depois de sorrir. Eu fui a única pessoa que subiu a bordo daquele avião e sobreviveu.
Até me levaram de regresso a casa.

Se, pelo contrário, viram aquelas imagens, talvez se questionem sobre o que faz aquele rapaz de feições montanhesas no deserto, por que razão está rodeado por generais de quatro estrelas, por que sorri. Foi por ter sido castigado. Como diria Obaid, cometer um crime depois de ter cumprido a pena tem algo de poético. A mim a poesia não me interessa muito, mas vejo uma certa harmonia na ideia do castigo antes do delito. Os culpados cometem o delito e os inocentes são castigados. É assim o mundo em que vivemos.
O meu castigo começou exactamente dois meses e dezassete dias antes do acidente, quando despertei ao toque de alvorada e, sem abrir os olhos, estendi o braço para puxar o cobertor de Obaid, um hábito adquirido depois de partilhar o quarto com ele durante quatro anos. Era a única maneira de o acordar. A minha mão tocou numa cama vazia. Esfreguei os olhos. A cama estava feita, com a dobra do lençol branco impecavelmente engomado por cima do cobertor de lã cinzento, a lembrar uma viúva hindu de luto. Obaid tinha desaparecido e os filhos da mãe iam sem dúvida suspeitar de mim.

É certo que se pode acusar os nossos homens de uniforme de muita coisa, mas nunca de serem imaginativos.”


CR